"a vida é um eterno rasgar-se e remendar-se"
-Guimarães Rosa
aproveito o furo na ponta pra puxar o tecido pelas extremidades e rasgá-lo no meio.
vivo fazendo isso na nossa relação.
rasgo o tecido que nos conecta pra sentir tanto a falta do seu remendo que fico em desespero e ansiedade buscando algo que entre no seu lugar.
um pedaço de pano que encontrei debaixo da cama junto com meus monstros. um pedaço da roupa que vesti há alguns anos quando não te conhecia. uma outra estampa que seja mais brilhante e mais visível que a sua pureza.
tudo que te substitua, e que ainda assim não me satisfaz.
vivo fazendo isso na nossa relação e tenho consciência disso.
te abandono todos os dias e te busco todos os dias.
te escolho todos os dias pra te esquecer todos os dias.
quero pregar esse tecido pra não ter jeito de se desfazer,
pra não ter traça que coma,
pra não ter tempo que dissolva.
escondo as tesouras dentro da gaveta, mas sempre sei onde encontrá-las.
te abandono todos os dias e te busco todos os dias.
diário picotado.
21 de agosto de 2023 - segunda-feira
ainda me lembro da dor do crescimento aos dez anos precisando massagear as pernas. era o nome que a gente dava pra alguns incômodos. os ossos esticam? não sei. mas o corpo espichou e doeu. mais tarde entenderia outras dores de estar neste corpo. hoje ainda tenho dores de crescimento, precisando massagear o interno, o útero, o peito, os órgãos que sentem a ansiedade de amanhã levantar bem cedo.
22 de agosto de 2023 - terça-feira
parece que pra sair ileso da cidade grande é necessário vestir indiferença antes de sair de casa. quando estou sozinha quero olhar pra baixo, vestir óculos escuros, fingir que não escuto. mas um bicho por dentro se revira, o espírito sobe que nem ânsia pela parede do estômago, me lembrando que não entrei nessa vida pra cegueira.
23 de agosto de 2023 - quarta-feira
horas longe de você.
24 de agosto de 2023 - quinta-feira
hoje é um dia importante. decidi que metaforicamente não vou mais tomar café amargo. quero café com gosto de pizza.
25 de agosto de 2023 - sexta-feira
não sei se já enfrentei esse sentimento antes, uma saudade constante, um calo que sempre aperta na ponta dos dedos da mão que falta.
26 de agosto de 2023 - sábado
me sinto traindo a rebelde que cresceu em mim, que queria ser só pra crescer só, me sinto traindo a rebelde que se dizia auto suficiente quando decido ser em coletivo. me sinto traindo a rebelde, mas penso que a minha rebeldia era só vontade de não assumir responsabilidade nenhuma.
não sou mais criança, rebeldia é assumir o risco do compromisso.
27 de agosto de 2023 - domingo
quando começo a pensar em ser um bicho de uma espécie que escolhe roupas segundo o gosto e a necessidade de pertencer, ser um bicho que equilibra em duas pernas e chinelos 3x meu tamanho que é pra caber também nos pés do pai, um bicho com pais que colocavam em mim o uniforme da escola às seis da manhã porque tinha remela demais nos olhos pra abrir, um bicho que comia cereal com banana e leite, um bicho que levava comida na lancheira e chorava sozinha no banheiro quando as duas únicas amigas faltavam. quando penso em ser esse bicho tenho que segurar na borda da mesa pra não cair em vertigem por estar num planeta em movimento, um movimento que não depende de mim e de nenhum bicho da minha espécie.
janelas abertas.
esse texto sobre diários: “vou usando por aí, molham, ganham poeira, e são resistentes — como eu, que vou levando eles comigo, sei bem porque: porque sou eles. e eles são sempre a gênese, a faxina, e a falta de compromisso que eu também preciso. escrever pra mim é o mais próximo que conheço de ser livre.”
nuvens por dentro