segunda de carnaval peguei uma estrada longa, 1.083 quilômetros pra ser mais precisa. diferente de outros carnavais, em que acordar na segunda era acordar com a fome de mais festa, ou com a vergonha, ou com a dor de cabeça, acordei com as malas prontas.
quanta coisa se remexe quando existe mudança, é revirando o armário, dobrando roupa, separando os livros que sobe a poeira da sujeira que não limpamos, com o que empurramos pra debaixo da cama, nossas assombrações de estimação.
um dicionário de movimento definiu “acenar” como a vontade da mão de varrer o passado. escolhi entre as roupas, cadernos, discos e planos, o que ia e o que ficava, fechei no porta mala, virei a chave e dei partida.
olho no retrovisor por segurança, mas na estrada quem está ao volante precisa ter os olhos no horizonte.
diário picotado.
domingo
busco gatilhos do lado de fora pro início do texto que nem formiga buscando doce bem na ponta dos dedos.
segunda
lembro que nas brincadeiras de pega a pega na rua a gente gritava FIGAS, o que significava: não estou mais no jogo-rapidinho-estava-quase-sendo-pega-ou-vou-beber-uma-água-e-tomar-um-ar. fiquei com uma vontade de dizer figas, não estou mais brincando, rapidinho, preciso beber uma água e tomar um ar.
terça
“amar o que é bom” dizia o texto, meu amor um pouco sujo se ofendeu, um amor desconfiado, rejeitado, um amor que ficou um pouco parecido com meu avô em dias ruins, rabugento, sem esperança, carrancudo.
escutei que a exaustão se forma com a falta de beleza. apesar de deformada, sei que a beleza é boa e persisto.
quarta
sem querer escancaro os dentes e me assusto. fecho a cara, aprendendo a usar minha arcada sem estar acompanhada da risada. pela primeira vez reparo nos caninos desgastados pelo bruxismo, parece que combinam com a raiva, os dentes como a letra da sonoridade desordenada desse sentimento novo. controlo a vontade do bicho que aparece com vontade de rasgar a carne.
quinta
tenho medo de morrer? não. tenho medo da vida, do que faço com as horas e do quão fácil se torna amassá-las em borrões sem saber responder no fim da semana o que eu sei, o que me emocionou, do que não quero me esquecer, isso sim me assusta, os borrões no meio da vida, os borrões que precisa existir pra não sucumbir, pra ganhar dinheiro, pra chegar lá, uma vida toda borrada.
sexta
dez anos sem te ver ele me disse e lembrei das tardes na escola, mesa grudada pensamento perdido, como é bobo um cérebro de quinze anos, bobo e fabuloso o crescimento dos ossos e nariz, como é bobo e fabuloso a vontade de fazer tudo diferente, morar longe, praticar as rebeldias, estudar ecologia, filosofia, sociologia e o que mais aproximar de um cérebro menos bobo e fabuloso, sair escondido, ter hora pra voltar, é meio de semana, tem prova de matemática, bobo e fabuloso acreditar.
sábado
chegando mais perto da serra as coisas ficam desimportantes. as incoerências, faltas, mentiras, ficam menores, irrelevantes.
janelas abertas.
durante essa viagem lembrei desse podcast de ciência e literatura gostosinho pra lavar louça
Sobre ser latina e viver o realismo mágico:
“Como imigrante e uma mulher que vai ficando cada vez mais cética com o passar dos dias, tenho medo de que essa faísca de poesia se perca em mim. Que o cinismo gélido mine a beleza que nós, dos trópicos, enxergamos mesmo nos momentos mais obscuros. Na dor, principalmente. Somos pessoas forjadas pelo sofrimento, aprendemos na raça a colocar poesia no mais duro dos dias.”
Obs.
Mudei de cidade, vim pro interior do Goiás. Estou feliz. Trago minúcias desse processo por aqui.
Vc é incrível, Gi!!!!!
você sempre será especial pra mim. que honra viver no mesmo espaço-tempo que você. quero saber mais sobre essa viagem fantástica!